sábado, 7 de março de 2009

Patativa – O Vôo de Um Poeta
Oswald Barroso
Entre os muitos Nordestes, há o Nordeste mítico dos seus poetas. Mundo de encantamentos e maravilhas, povoado de profetas errantes, anjos guerreiros e reis brincantes. Mundo legendário de violeiros andarilhos e cavaleiros repentistas, que palmilham estradas imaginárias, cantando proezas e decantando mistérios. Sobre um solo de carências e desigualdades, esses bardos levantam tesouros de versos, reinos de metáforas e catedrais de rimas.
Dentro deste Nordeste está o Cariri, território privilegiado por sua natureza pródiga e pela riqueza de sua cultura. Localizado no centro da região, nele, coabitam os mais diferentes ecosistemas. Chapadas, vales, serras e sertões, onde se cruzam os caminhos sertanejos, desde a ocupação do Nordeste pelo gado, no Brasil Colônia. Reduto do saber tradicional e espécie de umbigo da região, para o Cariri confluíram gentes vindas dos mais diferentes Estados brasileiros e praticamente de todos os recantos do Nordeste, constituindo um verdadeiro caldeirão de etnias, ritmos e sotaques. Da fusão destas culturas, resulta um espaço simbólico, de rara complexidade, realimentado periodicamente por novas migrações que dinamizam e, ao longo do tempo, sedimentam uma cultura própria e multifacetada. Na época pré-colonial foi domínio dos índios tapuias, especialmente dos temíveis cariri, que por 30 anos, resistiram aos invasores. Na Monarquia, foi marco de movimentos rebeldes, em 1817 e na Confederação do Equador, terra da heroína Bárbara de Alencar e de seu filho, Tristão Araripe, herói de três revoluções. Na República, é chão sagrado dos romeiros do Pe. Cícero. Nele se encontram estradas que percorrem tempo e espaço. Poetas, peregrinos, brincantes, mágicos, artesãos, artistas e artífices das mais diferentes linguagens e habilidades nutrem seu imaginário de fantasia e fatos extraordinários.
Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa, foi um bardo desse Nordeste maravilhoso e desigual. Cria dos sertões do Cariri. Filho de um sítio serrano, nos confins do Assaré. A Serra de Santana foi seu berço. Lugar de gado raquítico, agricultura sofrida e amplas paisagens. Aos quatro anos de idade, perdeu uma das vistas, o que na idade adulta lhe valeu a alcunha de Camões do Nordeste. Mas, na sua infância, os livros eram raros, não havia rádio nem energia elétrica. Olhos ele só tinha para a natureza em redor. O sítio do seu pai era pequeno e limitado. Mas sua inteligência o fazia pleno de detalhes e lições. O mundo lá de fora chegou primeiramente aos seus ouvidos. Veio na forma de sons cadenciados e melódicos. Histórias de trancoso, leituras coletivas de folhetos, rezas, canções de trabalho, sambas de latada, emboladas de coco e cantorias de viola. Cantos e melodias que se juntavam aos sons inúmeros da natureza. Jogos e brinquedos ampliados pela imaginação. Na adolescência, ruminava versos enquanto trabalhava. Sua enxada mexia-se ao ritmo das sextilhas e dos mourões que sua voz ia compondo no silêncio repleto dos sons da mata. Como um pássaro, o menino Antônio enchia as manhãs de pura música. Um dia, pediu autorização à mãe para vender uma ovelha e comprar uma viola.
Mas Patativa não foi apenas esse poeta passarinho, produto ímpar da natureza. Porque, se o Assaré foi seu sertão de poesias, o Crato foi sua Atenas sertaneja. Espécie de Capital cultural da região, o Crato já era, desde quando Patativa se teve por gente, um centro intelectual invejável. Nele, até hoje, uma intensa vida letrada e acadêmica, associa-se a uma cultura folclórica viva e ativa. Nas suas praças e feiras, bares e terreiros, culturas tradicionais e modernas se entrecruzam, para construir um renascimento caboclo. Convivem, num mesmo espaço, médicos e curandeiros, escritores e repentistas analfabetos, dançarinos clássicos e sapateadores brincantes, músicos eruditos e tocadores de pífanos, guitarristas e rabequeiros, para formar um amálgama de saberes não excludentes.Foi neste Crato, babel de tantas culturas, que Patativa conheceu a vida urbana e letrada. Sua mente curiosa ganhou mundo, numa cidade plena de ebulição. Logo estava em Belém e Fortaleza. Mais tarde, no Rio de Janeiro. Lia tudo o que lhe passava pelas mãos. Participava ativamente de debates e manifestações públicas. Convivia com intelectuais e artistas de diferentes gerações e extratos sociais. Era amigo das mais diversas personalidades públicas. Colaborava assiduamente, com revistas e jornais. Trocava correspondências com gente de todo o país. Acompanhava de perto a vida política. Um dia foi preso, por denunciar os desmandos de um Prefeito. (Colocar alguém recitando Prefeitura sem Prefeito e o poema sobre sua prisão, quando fala com uma patativa.) Patativa foi voz ativa nas grandes lutas populares, que tiveram lugar no Brasil, desde a década de 60, até sua morte.
Poetar é preciso, viver não é preciso. Em Patativa, a poesia ocupava todo tempo e espaço. Se o mundo existia, era para ser traduzido em poemas. Fosse na intimidade com a família, fosse no eito, trabalhando, fosse nas conversas de rua com os amigos, fosse no palanque das grandes manifestações, Patativa só usava a prosa para coisas pouco essenciais. Em tudo se servia de versos. Desde filosofar até brincar com os netos. Se em cada galho via uma rima e um verso via em cada flor, de versos e rimas era feita toda sua paisagem interior. Poemas em todos os gêneros e sobre todos os temas. Discursos políticos e sociais, em tom condoreiro. Filosofia em metro clássico ou linguagem matuta. Narrativas cômicas ou trágicas, em cordel. Ditos espirituosos em quadras. E lírica, por que não!? O melhor talvez sejam seus jogos com os sons, suas brincadeiras com as palavras. Porque ganham a atenção das crianças e enternecem os adultos.
Patativa poderia passar meses a dizer poemas, sem que lhe faltassem versos. Prescindia da escrita, tanto para fazer, quanto para guardar suas criações. Sua obra, mais que nos livros, estava no seu corpo. Fazer e dizer poemas era parte da sua natureza, porque se via pássaro, bicho que canta. Improvisava cantando, mas também gostava de deixar a palavra decantando no pensamento. Trocava rimas, aperfeiçoava métricas, refazia versos, criava novas versões para seus poemas. Tudo de memória. Nisto ele se diferenciava dos cantadores e de outros mestres do improviso. Sua mente era feito um caderno, onde suas criações, uma vez assentadas, estavam registradas como uma escrita, mesmo que para serem modificadas pelo autor, reescritas em pura memória. Do mesmo modo trabalhava os gestos, feito signos. Cada expressão facial, cada movimento de mãos, cada emissão vocal, fazia e refazia, para tornar mais clara a palavra e mais belo o poema.
Foi com esta poesia, ao mesmo tempo tradicional e moderna, oral e escrita, que Patativa se fez povo. Como Camões e Bocage, fez-se mito. Tornou-se propriedade coletiva. Quantas vezes, um feirante, uma dona de casa ou um roceiro qualquer, colocou versos em sua boca? Pela voz de povo correu mundo. Só depois se tornou livro e ganhou também o universo acadêmico. Virou nome de escola, tema de tese, ganhou título de doutor, foi homenageado por governadores e presidentes. Continuou a ser roceiro e símbolo da luta dos trabalhadores sem-terra, no Brasil. Sua obra é síntese da ancestralidade poética e da alma popular do Brasil sertanejo. Triste Partida, talvez a mais popular de suas canções, é um hino, cantado pelo migrante nordestino, que nela se reconhece, feito um menino, distante da terra-mãe, seja quem for, esteja onde estiver.
Reconhecer o valor de Patativa é reconhecer a beleza da terra, a força da gente e o valor da luta que seus versos cantam, porque foi ele todo poesia.

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